Caso de brasileiros deportados reascende debate: quando o uso de algemas é considerado legítimo?

 


No último sábado, noticiários divulgaram a informação de que os Estados Unidos deportaram cerca de 88 brasileiros em situação de migração irregular.

 

Para além das perspectivas de Direito Internacional que permeiam a matéria, o que chocou boa parte da comunidade brasileira foi o uso de algemas (e até correntes) nos migrantes irregulares, que apenas foram retiradas após intervenção da Polícia Federal.

 

O governo brasileiro reagiu e protestou contra o que chamou de “uso indiscriminado de algemas”, afirmando que houve violação dos termos de acordo com os EUA, que prevê o tratamento digno, respeitoso e humano dos repatriados"[1].

 

Em nota, o governo brasileiro ainda afirmou que os brasileiros foram submetidos a "tratamento degradante" e que considera “inaceitável” o desrespeito ao acordo firmado entre Brasil e EUA.

 

O aspecto polêmico do uso de algemas não é recente.

 

O Ex-Ministro do STF Marco Aurélio Mello lembra que, nos tempos do Império, Dom Pedro, quando ainda Príncipe Regente, em Decreto de 23 de maio de 1821, ordenou[2]:

 

[. . . ] que em caso nenhum possa alguém ser lançado em segredo, em masmorra estreita, escura ou infecta, pois que a prisão deve só servir para guardar as pessoas e nunca para as adoecer e flagelar; ficando implicitamente abolido para sempre o uso de correntes, algemas, grilhões e outros quaisquer ferros, inventados para martirizar homens, ainda não julgados, a sofrer qualquer pena aflitiva, por sentença final, entendendo-se, todavia, que os Juízes e Magistrados Criminais poderão conservar por algum tempo, em casos gravíssimos, incomunicáveis os delinqüentes, contanto que seja em casas arejadas e cômodas e nunca manietados ou sofrendo qualquer especie de tormento. (Em "Coleção das Leis do Brasil de 1821", Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1889, Parte II, p. 88 e 89).

 

Mesmo o Código de Processo Criminal do Império, de 29 de novembro de 1832, dispunha, no artigo 180, que, "se o réu não obedecer e procurar evadir-se, o executor tem direito de empregar o grau da força necessária para efetuar a prisão, se obedecer porém, o uso da força é proibido".

 

O atual Código de Processo Penal não trabalhou detalhadamente a matéria, deixando a cargo do intérprete, em grau de interpretação, as respectivas ponderações. O Supremo Tribunal Federal assim o fez, assentando na Súmula Vinculante N° 11, que:

 

Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado”.

 

Isso porque o preso não perde, por essa simples condição, a sua qualidade de cidadão, devendo lhe ser assegurado tratamento digno.

 

Se é certo, por um lado, que vivemos períodos históricos em que as pessoas foram desumanizadas - ou porque nos esquecemos ou porque não sabíamos que todo ser humano tem por inexorável característica a dignidade - por outro lado não é menos certo que hoje a dignidade da pessoa humana, no constitucionalismo contemporâneo, se tornou o núcleo das constituições ao redor do mundo e ponto fulcral a partir do qual se fundamentam todos os direitos e o próprio Estado democraticamente instituído.

 

Por essa razão também nossa Constituição republicana de 1988 previu uma série de garantias à pessoa que se encontra presa (aqui o vocábulo adquire sentido lato, abarcando as diversas posições jurídicas da pessoa penalmente imputada).

 

Em decorrência disso, o uso de algemas, embora não especificado pela Constituição, deve levar em conta esse tratamento que a lei maior confere à pessoa do preso, o que nos leva à conclusão de que seu uso deve ser excepcional e necessariamente fundamentado de acordo com o caso concreto.

 

A utilização de algemas em audiências e julgamentos também é assunto, há muito, debatido nas cortes superiores do Brasil, sendo hoje entendido que a utilização de algemas em sessão de julgamento somente se justifica quando não existe outro meio menos gravoso para alcançar o objetivo visado.

 

Sobre o assunto, o art. 474, § 3° do CPP prevê que “Não se permitirá o uso de algemas no acusado durante o período em que permanecer no plenário do júri, salvo se absolutamente necessário à ordem dos trabalhos, à segurança das testemunhas ou à garantia da integridade física dos presentes”.

 

Se não for devidamente fundamentada, a medida pode configurar constrangimento ilegal, podendo levar inclusive à invalidade do ato processual praticado.

 

Manter a pessoa do acusado, em audiência, com algemas, sem que se fundamente tal uso em fundamentos concretos ligados à periculosidade do agente, viola de maneira evidente princípios constitucionais relativos à presunção de inocência, à integridade física e moral do preso e o próprio direito de defesa, na medida em que a coloca em um patamar de inferioridade em relação à acusação.

 

Inclusive, o uso abusivo de algemas em mulheres durante o parto, levou o legislador a alterar o Código de Processo Penal que passou a prever que “é vedado o uso de algemas em mulheres grávidas durante os atos médico-hospitalares preparatórios para a realização do parto e durante o trabalho de parto, bem como em mulheres durante o período de puerpério imediato” (Art. 292, parágrafo único do CPP).

 

Por certo não é razoável concluir que uma mulher grávida em trabalho de parto apresente algum risco à segurança. Deve-se, portanto, apontar, com dados concretos relativos ao perfil do acusado, a necessidade do uso de algemas e visado à segurança dos presentes no ato.

 

Entende-se, pois, que o uso legitimo de algemas não é arbitrário, sendo, no entanto de natureza excepcional, a ser adotado nos casos e com as finalidades de impedir, prevenir ou dificultar a fuga ou reação indevida do preso, desde que haja fundada suspeita ou justificado receio de que isso possa a ocorrer, sempre respeitando as garantias constitucionais do preso e tendo como balizas os princípios da razoabilidade e proporcionalidade.



[1] Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2025/01/26/governo-brasileiro-publica-nota-oficial-sobre-situacao-de-deportados-tratamento-degradante.ghtml

[2] Referência constante do voto do ex-ministro do STF, Marco Aurélio, relator do Habeas Corpus 91.952-9/SP.


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