A questão posta reveste-se de certa complexidade. Historicamente, já passamos por sistemas processuais que admitiam que o juiz possuísse amplo protagonismo probatório e outros que inadmitiam essa postura ativa por parte do julgador.
Observando atentamente o que aduz a Constituição Federal, notadamente em seu Art. 129, I [1], temos que, no desenho do processo penal constitucional brasileiro, a iniciativa acusatória foi reservada ao órgão do Ministério Público, ou seja, fica afastada do órgão jurisdicional, ao menos em princípio, a função de acusar, com todos os seus consectários.
Ao eleger um órgão que assume a função de acusar, por consequência inafastável, a Constituição atribui às partes o papel de produção probatória.
Assim sendo, temos que a função de julgar fica reservada a um terceiro imparcial, na medida em que se preserva de qualquer contaminação (ou pré-juízos acerca da hipótese acusatória aventada), garantindo por sua vez o imprescindível princípio constitucional da imparcialidade da jurisdição (que decorre da garantia constitucional do juiz natural).
No entanto, a questão não é tão simples.
O Código de Processo Penal, datado do ano de 1941, possui diversos dispositivos que chocam com o modelo acima apresentado. Temos, por exemplo, o Art. 156 [2] que assegura a possibilidade de produção probatória (inclusive de ofício!) pelo juiz tanto na fase de investigação, como na fase de instrução processual.
Parte da doutrina considera não recepcionado pela Constituição Federal mencionado dispositivo, visto que violaria o modelo acusatório pretendido pelo constituinte.
É certo que, se por um lado, sempre se discutiu qual sistema teria sido adotado pelo Brasil no que concerne ao processo penal (se inquisitório ou acusatório), por outro lado, sinalizou-se o início de importantes mudanças após a publicação da Lei 13.964/2019 (o famigerado “pacote anticrime”).
Isso porque logo em seu Art. 3º, referida legislação alterou o Código de Processo Penal para aduzir que:
‘Art. 3º-A. O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação.’
Embora referido dispositivo ainda não tenha entrado em vigor (por força de decisão do Supremo Tribunal Federal que suspendeu a sua eficácia [3]) temos que os tempos sinalizam mudanças. Ao menos um importante “primeiro passo” foi dado rumo à definição acerca de qual sistema orienta o processo penal brasileiro.
Apesar disso, temos que o tema ainda gera acalorados debates e intensas reflexões.
É que, em que pese a previsão expressa supramencionada, ainda vigoram disposições legais no código que divergem frontalmente com referida disposição legal. Pode-se citar, como já indicado, Art. 156, que não foi revogado pela novel legislação.
O debate não se limita à teoria acadêmica, antes, tem sérias consequências práticas que podem levar a desfechos diversos na ordem processual penal.
Para ilustrar, citamos como exemplo, caso penal levado à apreciação da Corte Superior de Justiça no julgamento do REsp 1.846.407-RS, de relatoria do Ministro Sebastião Reis Júnior (Informativo de Jurisprudência n. 745).
No caso citado, o representante do Ministério Público deixou de comparecer à audiência de instrução. Diante disso, o próprio Magistrado passou a formular perguntas às testemunhas arroladas pela acusação.
Na ocasião, o Tribunal anulou referido ato processual, por entender que o Magistrado acabou substituindo uma das partes, no caso a acusação, em sua função de provar a hipótese acusatória formulada.
Ora, acertou o Tribunal, na medida em que reconhece que não é papel do juiz produzir prova, muito menos aquelas que favoreçam a comprovação da hipótese acusatória.
Por outro lado, temos que provavelmente pouco adiantará ser anulado o ato e, posteriormente, refeito, se o mesmo juiz permanece na presidência da instrução processual. Entendemos que, no caso concreto, o prejuízo à ampla defesa, ao contraditório e, principalmente ao juiz natural (imparcialidade) é evidente.
Nesse ponto concordamos com Aury Lopes JR [4] quando afirma que de nada adianta uma separação inicial das funções de acusar e julgar, se se permite ao juiz que, ao longo da instrução processual, assuma papel ativo na produção de provas ou na prática de atos típicos da parte acusadora.
Resta aguardar o pronunciamento do Supremo Tribunal Federal, no julgamento sobre a constitucionalidade dos dispositivos da Lei 13.964/2019 impugnados, notadamente os que fazem referência direta ao sistema acusatório.
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REFERÊNCIAS:
[1] Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:
I – ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida;
II – determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante.
[3] Vide ADI 6.298, ADI 6.299, ADI 6.300, ADI 6.305.
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