Foto:
site Human Rights Watch[1]
Em 2019, Nayib Bukele foi eleito
presidente de El Salvador com a promessa de transformar radicalmente a
segurança pública no país que, até então, era apontado como um dos mais
perigosos do mundo.
Bukele iniciou uma verdadeira guerra às
gangues, com encarceramento em massa de suspeitos, suspensão de direitos
constitucionais dessas pessoas, policiamento ostensivo e outras medidas de
recrudescimento penal. O CECOT -
Centro
de Confinamento do Terrorismo é apontada como a maior penitenciária da América
Latina e foi construída no seu governo.
Centro
de Confinamento do Terrorismo (foto: Wikipédia)
O presidente se orgulha em afirmar que,
desde que eleito, reduziu drasticamente os números de crimes violentos, dando
ênfase aos homicídios, que em 2023, registraram índice de 1,7 por 100 mil
habitantes, chegando a afirmar inclusive que El Salvador, no ano apontado,
fechou 365 dias sem registrar homicídios - no entanto, sobre essa última
informação, não há estatísticas conhecidas de fontes independentes[2].
O “milagre” da segurança pública em El
Salvador é muito semelhante ao observado na cidade americana de Nova York na
década de 90 quando vigorou a política da “tolerância zero”.
Esse modelo político de maximização do
Estado Penal, se baseou na Teoria das Janelas Quebradas (Broken Windows), idealizada
pelos cientistas James Wilson e George Kelling que se propuseram a analisar
como as pessoas se comportariam em dadas situações sociais.
Para eles, se um prédio tem algumas
janelas quebradas, vai passar a impressão de estado de abandono e de que não
importa o que seja feito com o prédio, pois ali não há uma “ordem”, o que
certamente incentivará a prática de atos de vandalismo.
Os cientistas também levaram em conta um
experimento produzido pelo psicólogo americano Philip Zimbardo. Em sua
experiência, Zimbardo deixou um automóvel em dois bairros diferentes nos EUA,
com índices socioeconômicos antagônicos.
No bairro menos favorecido economicamente,
o automóvel em pouco tempo foi vandalizado e teve peças furtadas. Já no outro
bairro, mais desenvolvido, o automóvel permaneceu intacto por dias, até que os
cientistas resolveram quebrar uma de suas janelas. Após isso, em pouco tempo o
automóvel foi vandalizado e teve peças furtadas também.
A partir dos eventos observados, os
pesquisadores concluíram que a desordem, mesmo que em grau diminuto, gera mais
desordem, podendo mesmo provocar o caos.
Inspirando-se nessa teoria, os
idealizadores da política da tolerância zero, o então prefeito de Nova York Rudolph
Giuliani e o delegado do departamento de polícia William
Bratton, desenvolveram uma política de segurança que se caracterizou pelo
excessivo rigor no enfrentamento à criminalidade de rua.
Ao menor sinal de incivilidade, a polícia deveria
intervir rigorosamente para combater essas situações e restabelecer a paz
social.
O elevado grau de drasticidade da
intervenção policial é justificado, então, pelo argumento de que sua
necessidade como único meio eficaz de inibição de práticas delitivas, pois a
violação à lei, ainda que mínima, se não combatida pode incentivar a prática de
crimes mais graves.
Nesse cenário, o Direito Penal toma uma
feição maximizada, excessivamente rigorosa, aumentando-se a violência estatal, o
encarceramento em massa, e a punição inclusive de condutas mais leves, tais
como a imprudência de pedestres (como pular a catraca do metrô), prática de
baderna, o uso de drogas em via pública, vadiagem, pichação, mendicância, furto
famélico etc.
Um dos problemas da “tolerância zero” é
que ela se limita ao encarceramento em massa. Parte-se da perspectiva de
“eliminação da visibilidade” do que está errado. Como uma espécie de política
de higienização, se retiram mendigos, viciados em drogas, pedintes e vândalos
das ruas para que, não estando mais visíveis aos demais, dê-se aparência de que
eles não existem, dando margem ou justificando práticas preconceituosas e
racistas de toda ordem.
O problema é que eles existem, passarão a
lotar prisões gerando, de todo modo, despesa para o Estado. Além disso, não
basta prender. Há que se investigar e produzir provas e condenar essas pessoas,
para que se mantenha a prisão. No entanto, a prisão não será “ad aeternum”
(para sempre). Em algum momento, essas pessoas sairão do presidio e retornarão
ao convívio social.
Uma marca da Tolerância Zero, na cidade de
Nova York, eram as humilhantes abordagens policiais denominadas stop and frisk
(parar e revistar), normalmente realizadas contra jovens pobres, negros e
latinos[4]. Prática também presente
em El Salvador.
Além disso, os resultados nos números da
violência gerados pela “tolerância zero” são fortemente refutados por
especialistas. Jamil Chaim Alves[5] alerta que estudos apontam
que o “milagre” observado em Nova York se deveu a outros fatores, tais como:
“a) considerável
crescimento econômico ocorrido nessa época, que gerou empregos e afastou jovens
da criminalidade; b) estruturação e estabilidade do tráfico de drogas,
provocando a redução da violência entre criminosos para regular a competição;
c) queda da população jovem mais propensa à criminalidade de rua; d) taxas de
criminalidade excepcionalmente altas no início dos anos 1990, estatisticamente
propensas a retornarem ao padrão de normalidade”.
Na verdade, na mesma época, outras cidades
americanas que não adotaram a “tolerância zero” também registraram notável
redução nos números da criminalidade.
As semelhanças entre o que ocorreu em Nova
York e o que estamos observando em El Salvador também permanecem no que diz
respeito à contestação dos resultados.
Inicialmente, há que se ponderar que as
taxas de homicídio em El Salvador já apresentavam tendência de queda.
Considerando, por exemplo, o intervalo de 2015 a 2018 (antes de Bukele assumir
seu primeiro mandato), observamos uma redução em quase metade dos números de
homicídio.
Em números absolutos a redução se deu de
um patamar de 6046 homicídios (2015) para 3148 homicídios (2018). O que se nota
é que a tendencia de queda permaneceu nos anos seguintes. Bukele só viria a
assumir a presidência no ano de 2019.
Frise-se ainda que o citado presidente
assumiu mandato pouco tempo antes do aparecimento da Pandemia da COVID-19.
Nesse momento excepcionalíssimo da história mundial, houve queda nos números
relativos à criminalidade em todo o mundo[8].
Além disso, afirma-se que o aumento da
violência ocorrido no ano de 2015 foi excepcional e se deveu ao fim da trégua
que havia sido firmada entre as principais gangues rivais de El Salvador para a
diminuição da violência[9]. Logo após, a tendencia
seria de estabilização e queda.
CONCLUSÃO
Esse modelo de política de segurança
pública denominado “tolerância zero” foi exportado para outros lugares, tais
como alguns países da Europa e América Latina, por se crer que a redução
significativa nos índices de criminalidade observados em Nova York teria
ocorrido justamente em razão da adoção desse modelo.
No entanto, após anos de estudos e
pesquisas, aponta-se que outros fatores sociais poderiam ter influenciado a
redução desses índices na cidade de Nova York, já que em outras cidades
americanas que não aderiram à tolerância zero também houve diminuição da
criminalidade.
A história nos tem mostrado que esses
modelos de políticas de segurança pública com ênfase no recrudescimento penal,
na verdade, são métodos mais paliativos do que efetivos no combate e diminuição
da violência, podendo apresentar resultados a priori, mas retomando os
índices de “normalidade” em um momento posterior.
No caso de El Salvador, é evidente o alto
custo que a população salvadorenha tem arcado para “bancar” essa política.
Primeiro, porque esse método favorece a
injustiça e a discriminação[10]: em razão do Estado de
Exceção vivido pelo país desde a implementação dessa política, a polícia e as
tropas do governo podem prender qualquer pessoa suspeita de filiação a gangues
sem o devido processo legal[11].
Além disso, são inúmeras as denúncias de
violações de direitos fundamentais praticadas pelo governo Bukele, que vão
desde prisões sem conduta específica praticada, inexistência de direito de
defesa e devido processo legal, a julgamentos coletivos que duram minutos, e
até mesmo prorrogações indefinidas de condenações que vão aumentando
ilimitadamente a pena imposta no julgamento.
A organização Humanitarian Legal Relief
chegou a afirmar que pelo menos 241 pessoas morreram nas prisões de El Salvador
desde o início da guerra às gangues de Bukele. A organização Human Rights
Watch, com sede em Nova York, nos EUA, aponta que cerca de 70 mil pessoas
foram presas em dois anos, incluindo aproximadamente 3 mil crianças, muitas
delas sem qualquer ligação aparente com atividades de gangues[12].
Em que pese essas denúncias, Bukele foi
reeleito presidente de El Salvador no ano de 2024 com maioria esmagadora de 85%
dos votos, o que nos faz refletir sobre a utilidade da “tolerância zero” como
ferramenta altamente lucrativa de marketing político e populista de líderes
autoritários.
Na contemporaneidade, após os avanços
teóricos sobre as funções do Estado e seu fundamento político-filosófico, o que
deveríamos nos perguntar é: justifica-se a adoção desse modelo, que
historicamente comprovou-se ineficaz e que se fundamenta na eliminação
arbitrária de direitos, para atender aos interesses marqueteiros dessas
lideranças políticas?
Deveríamos nos questionar igualmente até
que ponto vale a pena a importação desses modelos de segurança pública que são projetadas
para sociedades específicas e que têm geografia territorial, demografia,
desenvolvimento humano, economia, conflitos étnicos e ideológicos e
historicidade diferentes dos países para os quais os exportam.
Segurança pública é tema complexo para o qual não existe fórmula mágica e muito menos milagre. No caso de El Salvador, a violência tem raízes históricas que parecem não ter sido consideradas na elaboração do plano de segurança pública do governo e que, certamente, não desaparecerão com medidas simplistas de encarceramento em massa e supressão de direitos forjadas por modelos políticos requentados e superados há mais de um século.
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