Entre o novo e o velho: direito, discursos e uberização da vida.




Não trago verdades, trago reflexões. Esse texto não é contra o empreendedorismo, mas contra discursos falaciosos e suas falácias discursivas. Vamos a eles.

 

Para falar de discursos, temos que falar em linguagem. Em WITTGENSTEIN, temos que a forma de representação de signos é construída socialmente. Sabemos que a vida em sociedade só é possível graças ao processo comunicativo.

 

Este se realiza porque para cada objeto da vida existente em sociedade, atribuímos um signo, uma simbologia social e culturalmente criada e dotada de um significado que substituirá o objeto referido

 

O discurso não deve ser subestimado. Ao contrário, exerce papel decisivo na construção da subjetividade. Mas como? Vou exemplificar com um discurso já por nós conhecido e de indisfarçáveis propósitos. Sim, ele mesmo, o discurso de padrão de beleza. Ei-lo:

 

- Quer ser feliz? Seja bonito!

 

- Como?

 

- Simples, meu caro/minha cara...com apenas um nariz afilado, cabelos lisos, bocão, lipoaspiração e outras cirurgias mais, você experimentará um “novo eu”!

 

Agora pergunto: Quem fabrica esse discurso? Para quem? Com qual pretensão?

 

Não nos enganemos. Toda produção se volta para consumo. E para consumir, temos que comprar. Quem dispõe à venda esse discurso, o fabricou para vendê-lo, a um público que logo irá consumi-lo. Claro, não sem antes pagar o preço.

 

Adentrando nessa perspectiva econômica do discurso (claro, existe discurso para todo gosto!) analisemos a figura emblemática (ao menos em termos sociais) do ‘entregador de delivery’, isto é, do trabalhador que presta serviços de entrega, mais comumente a redes de fast food.

 

Há uma série de promessas, dirigidas normalmente a jovens de classe média (ou baixa) e que estão em busca de uma colocação no já disputado mercado de trabalho. Vamos ao discurso!

 

- Quer ser o seu próprio chefe?

 

- Não ter um “teto” de renda e com possibilidade de obter ganhos inimagináveis?

 

- Com flexibilidade de tempo de trabalho, sem carga horária fixa contratual a cumprir?

 

Nesse instante, é possível vislumbrar o brilho no olhar do jovem "projeto de empreendedor" de classe média (ou baixa), apropriando-se do discurso. Ele crê com uma fé beata que terá um “futuro promissor”, se abrir mão de todo e qualquer direito trabalhista, tidos como “ultrapassados” e “dispensáveis”, em vista dos ganhos financeiros muito mais promissores que obterá.

 

O que se vê na prática, no entanto, é que tais prestadores de serviços são expostos às mais exploradoras condições de trabalho, com ganhos pequenos (para usar um eufemismo conveniente).

 

Eles têm que perfazer, em rápida velocidade, longos trajetos e com exaustiva carga de trabalho para compensar os ínfimos valores monetários recebidos e, ainda, assumindo toda a responsabilidade por possíveis danos e/ou perdas supervenientes decorrentes do serviço.

 

Some-se a isso que não há qualquer garantia ou direito em contraprestação aos riscos assumidos, visto que não são empregados nos termos da legislação vigente.

 

Lembro do filme genial “Django Livre”, do (também genial) renomado cineasta Quentin Tarantino. Numa cena emblemática, novos escravos negros acabam de chegar na fazenda do senhor de escravos Calvin Candie (interpretado por Leonardo DiCaprio).

 

 


 

A narrativa se passa no final do século XIX e, na ocasião, os negros recém-chegados, ao ouvirem o comando para se dirigirem às suas atividades, de súbito, são chicoteados pois estariam “andando”. Eis o discurso (acompanhado de alguns açoites):

 

- Preto aqui não anda, preto aqui corre!

 

Traduzindo: Escravo não anda, escravo corre!

 

Note-se que o mesmo discurso, não necessariamente verbalizado, séculos mais tarde, continua a ser empregado.

 

- Entregador não anda, entregador corre!

 

(Afinal, alguém já viu entregador de delivery parado no sinal vermelho?)

 

O que pretende este meu discurso escrito nessas tortas linhas? É que li recentemente em tal site jurídico de ampla repercussão[1] uma fala da presidente do TST (Tribunal Superior do Trabalho), no sentido de que: "A uberização é um fenômeno que acontece no mundo tecnológico e que se repete nos mais diversos países".

 


O discurso está posto. Como interpretá-lo? Ora, se tal fenômeno “acontece no mundo tecnológico”, então seria algo novo. Correto?

 

De fato, os modelos sociais e, por consequência, trabalhistas se alteram com o passar do tempo. A influência das redes sociais, da velocidade pós-moderna e a cultura de massas tem influenciado tais relações. Não há como negar. Mas minha pergunta é: temos algo novo?

 

Bom, antes de investiga-lo, temos que rememorar alguns conceitos (velhos talvez, ultrapassados nem tanto). O fato social não se dissocia da norma que não se dissocia do valor. Isso aprendemos com a tridimensionalidade do Direito elaborada por Miguel Reale. Pois muito bem.

 

Como interpretar essa nova realidade social? Leio tais discursos:

 

- “Gig economy dispara e gera oportunidades na crise”[2].

 

- Gig economy é causa para a crescente precarização do trabalho[3]

 

- Gig economy é responsável pelo agravamento da desigualdade[4].

 

-“Regulamentar Gig economy pode salvar profissionais e empresários[5].

 

Os discursos, mais uma vez, estão postos. Mas algo me chama atenção. Apesar da tradução do termo Gig economy, em sua literalidade, significar “economia gigante” (gig = show), o termo também é utilizado como sinônimo de “economia de bicos”[6].

 

O sinônimo deste, que é descrito como fenômeno revolucionário, forjado na era digital 4.0 da sociedade Pós-moderna e de sua suntuosidade típica, soa como uma ironia machadiana. Mas ironias também são discursos.

 

Se as palavras não guardassem um quê de simbólico (voltemos ao início desse texto), tal sinônimo poderia ser ignorado. Mas possivelmente cairíamos no abismo da ignorância dos discursos e de seu “poder oculto”, aqui já brevemente apresentado. Já vimos que uma coisa que não podemos ignorar é o poder dos discursos e suas “fantasias mágicas”.

 

Uma coisa é certa, se nos primórdios do liberalismo econômico do século XIX experimentamos uma retórica discursiva que exaltava o uso abusivo e irracional da propriedade privada, do ponto de vista jurídico esse direito naturalmente era tido como absoluto e inquestionável.

 

A seguir, no compasso do Neoconstitucionalismo (neo = novo) - movimento da segunda metade do século XX - provamos de outro discurso: o da constitucionalização do Direito. Ora, aqui temos que a propriedade exerce uma função social e, portanto, seu uso tem de estar em sintonia com esta.

 

Hoje, século XXI, no auge da revolução digital da era 4.0, temos um novo discurso. Alguns preferem chamá-lo de neoliberalismo. – olha o neo aqui de novo! Novo liberalismo. Mas...novo em quê? Se trata de um novo ou apenas um velho e requentado discurso que por ora traja as vestes deste redesenho do liberalismo econômico caricato, aquele mesmo lá do século XIX, do Django?

 

O que se tem é uma nova forma de escravidão pós-moderna neoliberal. Uma narrativa que suprime direitos trabalhistas, aliena e oprime trabalhadores e onde o “final feliz” apenas é experimentado pelos grandes empresários que, com ela, só têm a ganhar.

 

Ficou claro quem elabora o discurso, para quem e com qual pretensão?

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REFERÊNCIAS

 

FAIRCLOUGH, N. Discurso e mudança social. - Brasilia: Editora Universidade de Brasilia, 2001.

 

WITTGENSTEIN, L. Investigações Filosóficas. Tradução e notas João José R. L. De Almeida. Nova cultural, 1999.

 

[1] https://www.migalhas.com.br/quentes/354875/presidente-do-tst-sobre-uberizacao--fenomeno-do-mundo-tec...

 

[2] https://www.jota.info/coberturas-especiais/sociedade-digital/gig-economy-disparaegera-oportunidade...

 

[3] https://artemisia.org.br/a-economia-dos-bicosea-maior-precarizacao-do-trabalho-na-pandemia/

 

[4] https://digilabour.com.br/2019/08/03/amellalaeconomia-digital-tambemeresponsavel-pelo-agravament...

 

[5] https://vocesa.abril.com.br/carreira/regulamentaraeconomia-dos-bicos-pode-salvar-profissionaisee...

 

[6] Disponível em https://www.conjur.com.br/2021-mai-01/futuro-justiça-trabalho-marcado-dilemas-modernos





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