De fato, alguma ordem há de haver no caos.
Não fossem as normas juridicamente impostas,
certamente, o atual estágio da vida em sociedade não teria sido alcançado,
posto que a barbárie, muito provavelmente, já teria se instaurado.
É certo que os conflitos qualificados pelo
“ingrediente” da violência, mais graves como são, exigem resposta estatal, na
mesma medida, qualificada. Eis que surge, então, como ferramenta de controle
social organizado, o Direito Penal.
Por essa razão é que se pode dizer que o Direito
Penal se caracteriza como o instrumento estatal mais drástico e invasivo na
esfera de vida privada do indivíduo.
Justamente por se valer de certo grau de violência
(institucionalizada, é verdade) que sua existência e uso demandam uma
justificação teórica tal que o legitime.
Hassamer, citado por Roxin[1],
chega a denunciar como terror estatal “qualquer tipo de ameaça punitiva do
Estado que não tenha como justificativa a proteção de um bem jurídico”.
Nesse sentido, faltaria ao Estado a legitimidade
necessária para agir com violência em face dos cidadãos, já que, de acordo com
a perspectiva pós-moderna (enraizadas desde o iluminismo e que sofreu os
influxos das modernas teorias constitucionalistas), o Estado existe para estes
e não o contrário.
É bem verdade que a justificação jurídico-filosófica
para o Direito Penal pode se alterar de acordo com as variáveis espaço v.s.
tempo.
No entanto, sempre há de ter caráter científico, sob
pena de voltarmos aos tempos medievos em que o poder do governante, ilimitado
que era, o permitia punir a conduta que lhe aprouvesse, sem nenhuma exigência
de limite, clareza, objetividade.
Mas o que pode (ou deve) ser objeto de tutela penal?
A título de ilustração cite-se o exemplo do adultério.
Sabe-se que, até pouco tempo, o Código Penal brasileiro previa em seu artigo 240 (hoje revogado) o tipo penal do adultério, cujo texto original estabelecia:
Art. 240 - Cometer
adultério:
Pena - detenção,
de quinze dias a seis meses.
§ 1º - Incorre na
mesma pena o co-réu.
§ 2º - A ação
penal somente pode ser intentada pelo cônjuge ofendido, e dentro de 1 (um) mês
após o conhecimento do fato.
§ 3º - [...]
Aqui há que se ressaltar que o tipo penal
supramencionado fora revogado no ano de 2005, pela Lei Nº 11.106.
O questionamento que não se pode deixar de fazer é: o
que orientou o comportamento do legislador ao estipular o tipo penal do Art.
240 do Código Penal?
Pode-se afirmar que haveria um intento de,
legitimamente, proteger o bem jurídico “casamento”, ou “família” ou mesmo
“honra objetiva”. No entanto, é bem possível que se quisesse evitar traições,
aqui encarada como comportamento socialmente (e moralmente) indesejado.
Em que pese existir divergências doutrinárias sobre o
que pode ou não ser considerado bem jurídico, é certo que, hoje, prevalece a
ideia de que apenas e tão somente a proteção de bens jurídicos,
e estritamente jurídicos, deve justificar a intervenção penal.
Nesse compasso, qualquer tipo de tentativa de intimidação e intervenção jurídico-penal que vise exclusivamente à proteção de sentimentos ou convicções de caráter estritamente moral, filosófico ou mesmo político, mas que não fira um bem jurídico, não pode ser considerada legítima.
[1] ROXIN, Claus. A proteção dos bens jurídicos como função do Direito Penal. 2 ed., Livraria do Advogado. 2018. Porto Alegre.
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