Sabemos que, no contexto do Processo Penal, a
verdade importa. E é justamente por isso que o processo penal deve se preocupar
com a qualidade da prova. No entanto, esse não é o cenário que encontramos na
prática cotidiana do sistema penal brasileiro.
Há consenso entre os estudiosos: a prova mais
utilizada no processo penal brasileiro é a prova testemunhal. Entretanto, se trata
de uma prova extremamente frágil, repleta de limitações — sensoriais,
emocionais, cognitivas, ideológicas e de memória — que comprometem sua
confiabilidade.
Essa fragilidade contribui diretamente para
erros judiciários. O Innocence Project tem nos ajudado a entender a
dimensão dessa fragilidade e a sua repercussão que desemboca numa série de
erros judiciários[1].
Uma pesquisa da Defensoria Pública do Estado
do Ceará, por meio da Rede Acolhe, analisando investigações de homicídio,
demonstrou que 66% dos casos contavam apenas com prova testemunhal ou
confissão. Em 30% dos casos, mesmo existindo câmeras de vigilância, as imagens
não foram anexadas aos autos.
Então, por que ainda aceitamos tão pouca
qualidade probatória?
Primeiro, porque o objetivo principal da
persecução penal — a condenação — é frequentemente alcançado. O sistema, mesmo
que falho, entrega o resultado que se espera dele. Segundo, porque o alvo da
persecução penal é majoritariamente formado pelas camadas mais pobres da
população, os indesejados do sistema. Não há interesse em se investir em métodos
eficientes de investigação e promoção de justiça quando os atingidos são os
socialmente marginalizados.
Não podemos esquecer que o sistema
penal/penitenciário exerce uma função social de caráter “higienista”. O
encarceramento em massa não é um acidente, é antes de tudo uma política penal pensada
e estruturada sob o viés da seletividade[2] e sustentada por uma
atuação muitas vezes conivente — e até protagonista — de agentes policiais,
ministeriais e judiciais.
Vivemos, portanto, em um cenário marcado por
baixíssima qualidade probatória, aliado a uma insuficiente valoração das provas
sob uma perspectiva epistemológica.
Diante desse cenário, temos que nos
perguntar: como valorar a prova testemunhal? Para responder a essa pergunta,
devemos antes entender quem é a testemunha e o seu papel no processo penal.
A testemunha é a pessoa que presencia fatos
relevantes para o processo, sem, contudo, possuir relação com as partes ou
interesse no resultado do processo.
Como o processo visa à busca da verdade
(ainda que não uma verdade absoluta), a testemunha é um dos meios para
atingi-la. No entanto, ela é humana — e, portanto, suscetível a falhas, vieses
e limitações. Além disso, ela pode ser influenciada por fatores internos (como
estresse, ideologias, emoções e falhas de memória) ou externos (como
sugestionamentos, drogas, luminosidade, tempo de exposição ao fato, entre
outros).
Por isso, é preciso distinguir
verdade/inverdade de mentira/sinceridade. Uma testemunha que presta um
depoimento falso por ter sido sugestionada, e não necessariamente porque está
mentindo (trata-se do que Gustavo Badaró denomina “erro honesto”).
Como, então, valorar adequadamente a prova
testemunhal? Devemos observar tanto o sujeito que depõe quanto a narrativa
apresentada.
Em relação ao sujeito, é fundamental
verificar se a testemunha tem ou não interesse no resultado do processo, o que
inclui saber se a testemunha prestou o compromisso de dizer a verdade, bem como
se houve contradita, especialmente em alguns casos, como, por exemplo, quando a
acusação se fundamenta em testemunhos de policiais[3].
Quanto à narrativa, é necessário analisar:
·
As razões de sua ciência;
·
O grau de vaguidade ou contundência do
depoimento prestado;
·
A coerência com demais provas e testemunhos
existentes nos autos;
·
A persistência ou as contradições dos relatos
ao longo do processo.
É preciso abrir os olhos para o que a
doutrina processualista alerta quanto às reflexões sobre epistemologia da prova
e a qualidade da prova testemunhal. No Brasil, especialmente, dada a cultura
inquisitória arraigada, muito ainda há para se superar. Só com uma análise
crítica e tecnicamente orientada da prova testemunhal poderemos avançar em
direção a um processo penal mais justo, eficiente e menos seletivo.
Mônica Matias
Advogada criminalista
[1] Apenas a critério de curiosidade: “centenas
de condenações injustas revertidas em tribunais de todo os Estados Unidos e,
pelo menos, em 300 dos casos, usando análises de DNA como prova da inocência de
réus condenados pela Justiça”. Disponível em: Revista Eletrônica CONJUR. https://www.conjur.com.br/2011-ago-22/entidade-provar-inocencia-300-reus-eua-20-anos/
[3]
Parte da doutrina sustenta que o
testemunho policial deve ser valorado com reservas, dado o interesse que os
agentes possuem em confirmar o resultado da ocorrência por eles realizada. Para
alguns é inválida sentença condenatória fundamentada exclusivamente na palavra dos
policiais. Nesse sentido, vide voto divergente dos ministros do STJ Ribeiro
Dantas e Reynaldo Soares da Fonseca no julgamento do AREsp 1936393/RJ.
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