A falência do Estado ante a ausência de estabelecimentos penais adequados ao cumprimento de pena privativa de liberdade é uma realidade por nós conhecida. O que muitos não sabem é que, no mais das vezes, a pessoa condenada acaba pagando mais do que deve.
Nesse texto explico um pouco sobre o assunto ao mesmo tempo em que faço um convite para reflexão.
Como se sabe, cada tipo penal (ou, para ser mais didática, cada crime) possui uma punição que deve ser proporcional à gravidade do delito praticado. Quando fixada a punição, na definição do tipo e da quantidade de pena a ser cumprida, o Estado deve zelar para que a execução dessa pena ocorra. Isso seria uma obviedade não conhecêssemos, infelizmente, as mazelas do sistema de justiça criminal brasileiro.
Eu explico.
A lei penal determina que a pessoa condenada deve cumprir a sua pena em certos estabelecimentos, a depender da pena aplicada.
Nesse sentido, ela afirma que se a condenação fixou regime fechado de cumprimento de pena, o que ocorre geralmente quando o crime é mais grave, a pessoa deve ser levada a estabelecimento de segurança máxima ou média. Se o regime fixado foi semiaberto, em crimes de gravidade média, o estabelecimento será uma colônia agrícola ou industrial (ou similar). Por fim, se o regime fixado foi o aberto, normalmente crimes menos graves, o cumprimento da pena será em casa de albergado ou estabelecimento adequado.
O problema é que no Brasil não existem casas de albergado. Isso mesmo, não existem! As poucas que existiam foram fechadas. E, além disso, são pouquíssimas as colônias agrícolas e/ou industriais que existem, incapazes, portanto, de dar conta da demanda gigantesca existente.
Diante disso, o que faziam os juízes? Inseriam no regime fechado, ou seja, naquele destinado a condenados por crimes mais graves, os presos condenados por crimes menos graves. Ou seja, tornou-se corriqueiro que condenados que deveriam cumprir pena em colônias agrícolas ou industriais ou em casas de albergado fossem levados a presídios (estabelecimento de segurança máxima ou média), única e exclusivamente pelo fato de o Estado não providenciar locais para adequado cumprimento de pena privativa de liberdade.
A injustiça da situação é manifesta, na medida em que essas pessoas recebem, na prática, uma punição muito maior do que deveriam. Imagine você que uma pessoa condenada a um ano e meio de prisão, em regime aberto, por crime de natureza não tão grave, por exemplo, e que, portanto, deveria cumprir essa pena em casa de albergado, fosse levada a cumprir pena em presídio (super) lotado de presos de maior periculosidade. Por óbvio, essa situação frustra os fins da pena (ressocialização) e muito provavelmente o resultado obtido seria o inverso do pretendido.
Simplesmente a ineficiência administrativa estatal, somada à falta de interesse político e indiferença social, tem levado milhares de pessoas a pagar, por suas condutas ilícitas, de forma mais severa do que o devido.
Numa tentativa de pôr fim ao problema, o Supremo Tribunal Federal resolveu flexibilizar o tratamento legal dado ao regime de prisão domiciliar para, em caso de inexistência de estabelecimento adequado, integrar tais pessoas em prisão domiciliar, mediante monitoração, enquanto a pessoa condenada aguarda o surgimento de vaga[1].
Ao que parece essa tentativa de solução iniciada pelo STF não agradou, pois a recusa em aplicar o entendimento desse tribunal era (e ainda é) manifesta. Sobre o assunto, inclusive, a Suprema Corte chegou a editar súmula vinculante[2].
Infelizmente, não se vislumbra no cenário político nenhuma sinalização de mudança de rumo no que diz respeito a políticas de construção e melhoramento de estabelecimentos penais destinados aos regimes aberto e semiaberto.
Resta-nos, então, a nós atores da justiça criminal que diuturnamente lutamos pela fiel aplicação da lei e das disposições constitucionais, manter firme vigilância e exigir rigoroso cumprimento da decisão da Suprema Corte por parte daqueles que devem observá-la e aplicá-la.
[1] Assim decidiu a Suprema Corte no julgamento do RE 641320/RS: Havendo déficit de vagas, deverão ser determinados: (i) a saída antecipada de sentenciado no regime com falta de vagas; (ii) a liberdade eletronicamente monitorada ao sentenciado que sai antecipadamente ou é posto em prisão domiciliar por falta de vagas; (iii) o cumprimento de penas restritivas de direito e/ou estudo ao sentenciado que progride ao regime aberto. Até que sejam estruturadas as medidas alternativas propostas, poderá ser deferida a prisão domiciliar ao sentenciado.
[2] Súmula Vinculante 56: A falta de estabelecimento penal adequado não autoriza a manutenção do condenado em regime prisional mais gravoso, devendo-se observar, nessa hipótese, os parâmetros fixados no RE 641.320/RS.
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